Dezembro Vermelho e a interação entre imunossupressão, HIV e oncogênese viral
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- há 3 dias
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O Dezembro Vermelho, campanha dedicada à conscientização sobre HIV/AIDS, permite ressaltar aspectos científicos fundamentais da interface entre imunossupressão, infecção viral crônica e tumorigênese, especialmente no contexto do Sarcoma de Kaposi (SK). O Sarcoma de Kaposi é um tumor vascular agressivo associado à infecção pelo herpesvírus humano tipo 8 (HHV-8), cuja ativação oncogênica depende de mecanismos complexos envolvendo disfunção imunológica e inflamação crônica. Em pessoas vivendo com HIV, a depleção progressiva de linfócitos CD4+, associada à hiperativação imune sustentada e ao desbalanço de citocinas como IL-6, TNF-α e VEGF, cria um microambiente permissivo para proliferação descontrolada das células endoteliais infectadas pelo HHV-8. O estabelecimento da terapia antirretroviral combinada (TARV) transformou esse cenário, reduzindo drasticamente a incidência e a mortalidade associadas ao SK. Entretanto, mesmo no contexto da TARV moderna, o SK continua sendo uma neoplasia definidora de AIDS e um marcador clínico crítico de falha imunológica, adesão inadequada ou coinfecções descompensadas.
O Dezembro Vermelho, portanto, não se limita à prevenção; ele traz à discussão o papel da vigilância oncológica em populações imunocomprometidas, reforçando que o manejo do HIV deve considerar não apenas o controle viral, mas também a prevenção e o tratamento das malignidades associadas, situando o SK como um exemplo paradigmático de interação vírus–hospedeiro.
Por que o Sarcoma de Kaposi mantém relevância clínica mesmo na era da TARV?
Apesar dos avanços farmacológicos que caracterizam a era da TARV e dos esquemas antirretrovirais de alta barreira genética, o Sarcoma de Kaposi permanece relevante devido à persistência de fatores virológicos, imunológicos e epidemiológicos que modulam sua expressão clínica. O HHV-8 não é eliminado por nenhum regime antirretroviral e mantém latência em células endoteliais e linfóides, alternando ciclos de replicação produtiva e latente conforme o estado imunológico do hospedeiro. Em indivíduos com HIV, episódios de queda do CD4+, supressão virológica inconsistente ou recrudescimento inflamatório favorecem a reativação do HHV-8 e, consequentemente, a expansão clonal das células infectadas. Além disso, a heterogeneidade genética do HHV-8 e seu repertório de proteínas miméticas de citocinas, como a viral IL-6, intensificam vias angiogênicas e antiapoptóticas, sustentando o fenótipo tumoral.
A epidemiologia do SK também contribui para sua relevância: em algumas regiões, como África subsaariana, a coinfecção HHV-8/HIV é hiperendêmica, e a limitação de acesso à TARV aumenta a incidência e gravidade da doença. Em países com ampla cobertura terapêutica, o SK ressurge em contextos como síndrome inflamatória de reconstituição imune (IRIS), sobretudo quando a TARV é iniciada com carga viral muito elevada ou imunossupressão avançada. Assim, mesmo com supressão viral, o SK continua sendo marcador sensível de desequilíbrio imune e biomarcador clínico de vulnerabilidade oncológica.
Quando a TARV isolada é suficiente para induzir regressão das lesões de Sarcoma de Kaposi?
A TARV isolada pode ser terapêutica para um subgrupo de pacientes cuja fisiopatologia da doença é majoritariamente driven pela imunossupressão sistêmica e não pela agressividade intrínseca da neoplasia. Pacientes com SK inicial, limitado a pele ou mucosas, sem envolvimento visceral ou edema significativo, frequentemente apresentam regressão parcial ou completa das lesões após semanas a meses de supressão viral sustentada. Esse fenômeno decorre da restauração gradual da resposta imune citotóxica CD8+ e da redução de citocinas pró-angiogênicas induzidas pelo HIV ativo. Além disso, a estabilização da função dos linfócitos CD4+ auxilia na contenção da replicação do HHV-8, especialmente nas fases líticas, ponto crítico para a progressão tumoral.
Contudo, a resposta à TARV não é universal. Lesões extensas, progressivas ou sintomáticas podem refletir clone tumoral autônomo, não responsivo ao restabelecimento imune, exigindo intervenções adicionais. A TARV também exige monitorização estreita para distinguir entre progressão verdadeira e fenômenos paradoxais, como o IRIS, que podem se manifestar como aparente piora das lesões logo após o início da terapia. Em suma, a TARV isolada é estratégica em casos selecionados, mas deve ser avaliada dentro de um contexto clínico-imunológico robusto para evitar atraso terapêutico em apresentações agressivas.
Em quais situações o tratamento local é preferível à quimioterapia sistêmica no Sarcoma de Kaposi?
O tratamento local é a escolha recomendada para pacientes cuja doença é restrita, sintomática ou com impacto estético significativo, mas sem sinais de agressividade sistêmica. A lógica terapêutica reside no caráter multifocal do SK, que, paradoxalmente, não impede o benefício de abordagens direcionadas quando o volume tumoral é limitado e não há evidência de replicação viral maciça ou envolvimento visceral. A quimioterapia intralesional, com agentes como vinblastina ou bleomicina, é particularmente útil em lesões pequenas e bem delimitadas, proporcionando respostas rápidas, com mínima toxicidade sistêmica.
A técnica permite alta concentração local do quimioterápico, induzindo necrose tumoral e reduzindo o componente angioproliferativo característico do SK. Já a radioterapia se destaca para lesões maiores, infiltrativas ou localizadas em regiões de impacto funcional, como cavidade oral, genitália ou extremidades. A radiossensibilidade do SK permite controle local eficaz com doses relativamente baixas, preservando tecidos adjacentes. Essas abordagens, no entanto, devem ser integradas à TARV, que permanece o pilar terapêutico. A indicação de terapia local deve considerar fatores como taxa de crescimento, ulceração, dor, sangramento e impacto psicossocial, mantendo vigilância estreita para identificar sinais precoces de disseminação ou refratariedade que justifiquem transição para terapia sistêmica.
Quais critérios definem a necessidade de quimioterapia sistêmica combinada à TARV no Sarcoma de Kaposi?
A quimioterapia sistêmica é indicada quando o SK ultrapassa a capacidade de controle imunológico restabelecida pela TARV, caracterizando-se pelo envolvimento cutâneo extenso, presença de acometimento visceral sintomático (como gastrointestinal ou pulmonar) ou falha de resposta às estratégias locais. A extensão cutânea significativa, muitas vezes medida por número, distribuição e profundidade das lesões, indica doença com alto potencial angiogênico e replicação viral ativa, demandando intervenção sistêmica imediata. O envolvimento visceral, especialmente o pulmonar, é um preditor de alta morbimortalidade, justificando a intensificação terapêutica com esquemas citotóxicos eficazes.
Outro cenário crucial é o SK associado à síndrome inflamatória de reconstituição imune (IRIS), no qual a hiperativação do sistema imune durante a TARV pode exacerbar as manifestações clínicas do tumor, exigindo quimioterapia sistêmica para controlar o processo proliferativo desregulado. A decisão terapêutica deve integrar variáveis como estado funcional, carga viral, contagem de CD4+, comorbidades, risco de toxicidade e disponibilidade de agentes. Embora a TARV seja indispensável, sua combinação com quimioterapia permite suprimir tanto o componente imunológico quanto o tumoral, atuando de maneira sinérgica na contenção da progressão.
Por que a doxorrubicina lipossomal é considerada o padrão ouro na terapia sistêmica inicial do Sarcoma de Kaposi?
A doxorrubicina lipossomal peguilada é amplamente considerada o agente de primeira linha para o tratamento sistêmico do SK devido ao seu perfil farmacocinético favorável, maior seletividade tumoral e redução expressiva de toxicidade quando comparada às formulações convencionais. A nanotecnologia lipossomal confere maior tempo de circulação, menor depuração plasmática e extravasamento preferencial em tecidos com permeabilidade aumentada, como o microambiente angiogênico típico do SK. Esse perfil melhora a taxa de resposta objetiva, reduzindo efeitos adversos como cardiotoxicidade e mielossupressão. Estudos demonstram respostas superiores e mais duradouras da doxorrubicina lipossomal em comparação com combinações antraciclina mais antigas, além de menor risco de toxicidade cumulativa.
Confira os comentários do professor Caio Niela, que integra o time de professores da nossa Pós Graduação de Farmácia em Oncologia:
Como selecionar terapias subsequentes em casos de progressão ou refratariedade no Sarcoma de Kaposi?
A escolha da terapia subsequente depende fundamentalmente da velocidade de progressão tumoral, do padrão de refratariedade e da tolerabilidade do paciente aos agentes previamente utilizados. Em casos de progressão rápida sob antraciclina lipossomal, o paclitaxel é a recomendação predominante devido à sua capacidade de induzir respostas mesmo em tumores quimiorresistentes, modulando microtúbulos e interrompendo vias de proliferação associadas ao HHV-8. Para progressões lentas ou parcialmente responsivas, a transição pode envolver alternância entre classes farmacológicas ou estratégias combinadas em contextos específicos. O manejo deve integrar vigilância de toxicidade cumulativa, especialmente neuropatia e mielossupressão, além de avaliar adesão à TARV, carga viral e presença de IRIS. Novas terapias-alvo e imunomoduladores vêm sendo estudados, incluindo inibidores de mTOR, anti-VEGF e imunoterapias, embora seu uso ainda seja restrito a ensaios clínicos ou situações excepcionais. A reavaliação periódica por métodos de imagem, marcadores clínicos e impacto funcional é essencial para individualizar a terapia subsequente, garantindo equilíbrio entre controle tumoral e qualidade de vida. Assim, a sequência terapêutica no SK exige abordagem dinâmica, multidimensional e guiada por parâmetros de agressividade biológica.
Referências: UpToDate. AIDS-related Kaposi sarcoma: Staging and treatment. Acesso em 09 dez. 2025.
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